O sorriso fala. Sempre. Mas Rafael Luis Cavalcante dos Santos, 32 anos, nascido e criado na Zaki Narchi também fala. Sempre com propriedade, dá uma aula sobre a vida. A liberdade cantou no dia 04 de dezembro de 2014 e, desde então, é sua melhor amiga.
Além de, claro, sua esposa Regiane Cristina. Que, sob as palavras de Rafa, “deu bastante força, fez com que eu amadurecesse bastante, a mulher tem esse poder”. O amor subiu a serra desde uma noite quente do mês de janeiro na Praia Grande, litoral sul de São Paulo.
Era início do ano, Rafa e alguns mais dois amigos da Zaki estavam aproveitando alguns dias na praia e foram dar um rolê na orla. Na azaração, encontraram Regiane e mais algumas amigas, a conversa foi rolando, a noite passou e desde então os dias com Regiane são sempre cheios de sol e muito amor.
Tudo isso, um mês depois de poder voar pelo mundo novamente. Na tarde do dia 03 de dezembro de 2014, Rafa ficou sabendo pelos telefones de dentro das grades que sua liberdade estava com dia e hora marcada. Foi juntando seus pertences, doando tudo o que tinha para a rapaziada que ficaria no Centro de Progressão Penitenciário de Jardinópolis, interior de São Paulo, e deixou consigo as cartas que recebia, fotos, uma camisa polo, uma bermuda jeans, uma blusa de frio e o chinelo. Tudo pronto para ir embora em mais um dia abafado no fim do ano.
As horas passaram e a notícia não chegava. A noite virou e um pouco antes do almoço do dia 4 o diretor apareceu com a papelada e a notícia de que a liberdade cantou. Com o dinheiro do pecúlio em mãos, comprou a passagem na rodoviária de Ribeirão Preto, uma cerveja gelada e embarcou rumo a São Paulo às 20h. Chegou em casa por volta da 00h30, de surpresa. Apenas sua irmã sabia que ele chegaria, e a alegria de Maria da Penha, sua mãe, foi imensa.
“Fiquei 3 anos e 5 meses. Foi tempo de aprendizado, ao mesmo tempo que foi um momento de revolta. Porque o sistema não recupera ninguém, ele é totalmente opressor, ele te faz testar o seu limite. Como ser humano, como homem.”
3 anos e 5 meses de autoconhecimento e saudade da família, na primeira oportunidade de sair do mundo da malandragem, Rafa o fez. Sempre pensando em sua mãe, no quanto sofria para visitá-lo e em tudo o que passou viajando por delegacias.




Anterior
Próximo
De dentro da Zaki, Rafa conheceu o mundo das facilidades. Tudo vinha rápido e parecia muito bom. Aos 21 anos, depois de aprontar, conheceu o universo que o privou da liberdade.
Rafa foi criado com muito amor por sua mãe e seu padrasto, João Batista, também conhecido como Jão ou Batista. Jão foi pai do moleque que conheceu a vida nas paredes da Zaki Narchi. Condenado a ver o mundo por trás das grades por 16 anos, Batista estava em regime semiaberto, trabalhando, e passou na Zaki para ver a família.
“Ele foi assassinado no mesmo dia que a mãe dele faleceu.”
No dia em que Rafa perdeu seu pai, perdeu também sua avó postiça por motivos de doença, que morava no Rio de Janeiro. Era fim de tarde, por volta das 17h30, foram até o trailer da Marluce, que fica no fundo dos prédios para tomar um refri. Rafa chegou por trás, bateu carinhosamente na barriga de Jão, bebeu um gole do refrigerante e se despediu com um abraço já cheio de saudade.
Em questão de minutos, correria geral na comunidade. A polícia baixou por lá e a rapaziada toda saiu disparada para se esconder nos prédios. “Rafa, não vai, pelo amor de Deus, atiraram no Batista”, gritou uma amiga. O rumo mudou. Aos 21 anos, Rafa foi correndo em direção ao bloco 21 e quando virou a esquina, sua perna fraquejou.
As pedras do asfalto tocaram os joelhos de Rafa que viu seu pai baleado no chão. A memória não segura muito os fatos daqui pra frente, tudo o que se lembra é de que, por volta das 20h, foi chamado na antessala da UTI do Hospital do Mandaqui para receber a notícia de que Batista tinha partido.
A suspeita é de que a Polícia Civil foi quem causou tamanho buraco no peito de Rafael. Até hoje, não é possível afirmar fielmente o que aconteceu. As imagens desse dia estão gravadas, passo a passo, nas lembranças de Rafa.
Meses depois, quando se viu atrás das grades, Rafa sentiu a obrigação de colocar a cabeça no lugar. Aproximou-se novamente de Deus, leu a Bíblia toda, ouviu músicas que o acalmavam e depois de muito se revoltar com o sistema opressor, entendeu que a saída para sua vida era deixar o mundo do crime de lado.
A pena de 9 anos e 11 meses foi reduzida para menos de 4 anos.
“Acho que ninguém cumpre a pena toda no Brasil não. (…)
O Brasil, ele relaxa a pena, a pena é relaxada”, conta.
Mesmo de dentro das grades, Rafa era linha de frente, comandava cerca de 200 pessoas. Ele conta que, com tudo isso, aprendeu a lidar com todo tipo de mente: maldosas, bondosas, inocentes e até doentes.
Após entender que só ele mesmo poderia tomar as rédeas de sua vida, deixou a malandragem para trás. Hoje, após trabalhar com montagem de pregadores de madeira e embalando peças de brinquedo lego durante o semiaberto, Rafael passa o dia como contratado da prefeitura na rotina agitada das podas de árvore na capital paulista. Cada dia em um canto, cada dia em uma rua.
“A única pessoa que pode escrever sua história é você mesmo. Então, meu, ninguém vai chegar aqui e falar: ‘Ah Rafa, vou fazer isso por você e isso aqui você vai fazer assim, cara, tá bom?’ Ninguém vai fazer isso por mim, a única pessoa que pode escrever sua história é você mesmo”.
Através de suas vivências, Rafa busca passar para a molecada da Zaki tudo o que aprendeu. “O caminho mais fácil sempre vai tá ali, sempre vai ter o caminho mais fácil. Falo pra eles: ‘tudo vai ser ilusão, filho, sai daí. O bagulho é gostosinho, é desse jeitinho’. E eles dão risada porque eles sabem que o que eu tô falando é o que eles tão vivendo, que estão sentindo.”
Por isso, encontrou no esporte uma forma de ser ponte para os meninos e meninas que vivem nas mesmas ruas em que ele cresceu. Por diversos anos, também deu aulas na Escolinha da Zaki, projeto que leva futebol à criançada. E hoje, afirma sem dúvidas: “falo pra eles sempre estudarem, porque algo que ninguém tira da gente é o conhecimento. A gente pode perder tudo pra qualquer pessoa, até a nossa vida a gente perde. Mas o conhecimento ninguém tira da gente, tá dentro de nós”.
Sempre com sorriso no rosto, Rafa sente orgulho de suas raízes, de sua família, de sua história. Animado, em meio a risadas, termina nossa conversa dizendo:
“vai ser bacana, vou estar na internet. Que isso, cara, nunca imaginei isso”.








Anterior
Próximo