Janela da Zaki
O desenho da “estranha mania de ter fé na vida”

O desenho da “estranha mania de ter fé na vida”

Milton Nascimento e Fernando Brant desenham Marias, mulheres e brasileiras em sua música. Com um dom, uma certa magia, Maria da Penha Cavalcanti é uma delas: a mulher que esbanja força, que carrega o som, o suor e que ri quando deve chorar. Aos 51 anos, traz no corpo a marca e a graça, além da estranha mania de ter fé na vida. 
Com “uma força que nos alerta”, Maria da Penha, conhecida por Penha, vive nos corredores da Zaki Narchi desde os 17 anos. Vinda da Paraíba para São Paulo, morou primeiro no Jaçanã e depois tirou o peso do aluguel das costas quando criou raízes nos barracos da Zaki ao lado de seu noivo, mãe e três irmãos. 
Penha tem três filhos: Rafael, Carol e Gustavo. Como mulher “que merece viver e amar”, encontrou o afago do amor três vezes, com quem gerou seus frutos. 
Rafael, o qual a história já foi contada, por certo período, seguiu o caminho da vida fácil. Durante três anos e meio, Penha não viveu, apenas aguentou a dura realidade de visitar o filho que estava atrás das grades. Os detalhes desses dias, ficam guardados em seu coração e no silêncio da relação com Deus. 

                                            “Só Deus sabe o que eu sofri, pra caramba.”

Carol, a princesa da casa, deixou o mundo mais cor de rosa. Entre todas as festas de aniversário para os filhos, Penha se lembra de uma: o aniversário de 5 anos de Carol. “Esse apartamento ficou do tamanho de um ovo, foi tanta gente”, conta entre risadas. Amigos e família reunida, decoração da Barbie e Carol de vestido cor de rosa. 
O caçula, Gustavo, carrega a responsabilidade de ser a companhia dessa mulher que é som e suor. Aos 18 anos, é quem divide o apartamento com a mãe que, como tantas outras no planeta, tem a gana e simboliza a força de ser mulher. Mãe dos três, ela “é a dose mais forte e lenta” que cada um deles poderia ter como exemplo.
Desde 1998 na Zaki, Penha vive a aventura de misturar a dor e a alegria. Ainda nos barracos, lembra-se dos episódios de fuga dos presos do Carandiru. A polícia invadia a favela em busca dos fugitivos, arrombava e entrava nos barracos ao passo em que os reclusos faziam o mesmo. Os moradores, por sua vez, ficavam em meio ao fogo cruzado.
Ainda nas dores que ficam na memória, Penha revive a apreensão que era dividir a Zaki com nomes procurados pela polícia. E, para completar, a explosão do Carandiru, que causou um enorme estrondo na Zaki. 

                “Liberaram a gente pra ir lá ver uma vez. Aí entrei lá, a gente entrava nas celas.                                       nossa, coisa horrorosa. Deus me livre. Eu fiquei mesmo traumatizada”, relata.

Quanto às alegrias, conta animada sobre a vez que o Silvio Santos foi gravar com Edson Celulari na favela. “Foi muito emocionante, a gente viu os artistas, tirei foto e tudo. Mas já faz anos.” Tratava-se da telenovela Brasileiros e Brasileiras, exibida no SBT entre 1990 e 1991. 
É preciso ter sonho sempre, afirma Milton Nascimento. Para Penha, o sonho foi pegar as chaves de sua casa em mãos. O escolhido foi o bloco 34, mas como nem sempre o sonho segue o planejado, o apartamento que caiu em suas mãos foi no bloco 24. “Ainda bem que eu não me arrependi de ficar nesse bloco, que ele é maravilhoso”, conta cheia de orgulho por seus vizinhos e o cuidado que têm com o prédio, como instalar câmeras de segurança e interfone. 
Mas os sonhos não param por aí. Voltar para sua terra natal e levar a mainha de volta ao refúgio é um deles, que só poderá ser realizado depois de se aposentar. Após trabalhar como copeira, auxiliar de limpeza, doméstica e em uma empresa de ônibus, está na ONG Casa da Sopa há 10 anos. 

       “Eu trabalho como auxiliar de limpeza, mas eu faço tudo, ajudo na cozinha, faço tudo, tudo.                                                          (…) Eu adoro trabalhar lá”, conta.

Penha tem a manha e a graça de encontrar nas amizades e em sua família a alegria em viver. Hoje, é avó de João Pedro, filho de Carol. Ser avó sempre foi uma vontade, e entre todas as amigas, só faltava sua vez. “Graças a Deus tem o Joãozinho, que é meu xodó. Muito bom ser avó, quando ele começar a falar (vai ser) melhor ainda, chamar a gente de vovó”, conta ansiosa e escrevendo sua história pelo olhar. 
Acima de tudo, Maria da Penha tem “a estranha mania de ter fé na vida”. Sem ao menos saber, carrega consigo a luta de ser mulher em um mundo patriarcal. Mãe de três, não precisa de um homem ao seu lado para viver e ser amada, muito menos para esbanjar gana, força e raça. Como qualquer outra Maria no planeta, sustenta no sorriso as batalhas que enfrenta e segue a vida cheia de felicidade por suas conquistas.