Janela da Zaki
Mergulho

Mergulho

 
Uma cidade dentro de outra cidade. A Zaki Narchi não dorme, assim como a movimentada São Paulo. 35 prédios, quatro andares e quatro apartamentos por andar. O movimento é constante: conversas, canções, risadas e gritos fazem a música da comunidade que não fecha os olhos. Mas que, infelizmente, é escondida por uma cortina invisível.
“Me chamo Rafael, tenho 32 anos. E moro na Zaki há 32 anos.” Sorriso largo, simpatia em pessoa, coração voltado para a comunidade e orgulho de suas raízes é o que transparece Rafael Cavalcanti. Desses 32 anos de vida, dois passou no interior e outros três e alguns meses, no sistema prisional. Rafael afirma, em tom saudoso e sempre com o sorriso no rosto, que a Zaki o influenciou positivamente:

                      “quem eu sou hoje é graças ao lugar de onde eu vim, das minhas raízes”.

Maria da Penha Cavalcanti, sua mãe, gosta de um bom papo. História pra contar é com ela mesma, e, sua felicidade está nos pequenos momentos, no crescimento dos filhos, no nascimento do neto, na família formada, no dia a dia da Zaki Narchi.  “Eu gosto de arrumar minha casa, fazer um almoço pra eu e Gustavo, gosto de ir no mercado, de ir na feira. Todo domingo eu vou na feira, nem que seja com 10, 20 reais, vou na feira comprar fruta”, conta de forma divertida. Gustavo é o caçula de seus três filhos, todos nascidos e criados nas ruas que cruzam o Conjunto Habitacional.
Em 1988 Penha chegou até a Zaki Narchi, casada e ainda sem filhos. Nas memórias, um passado engasgado na garganta com a certeza de que as vivências formaram a mulher que é hoje. Barracos, chão batido, esgoto a céu aberto e ratos dividindo o espaço com os moradores era a realidade.
As mesmas imagens revivem também as lembranças de Áurea Marta, mulher preta e de sorriso que comunica. 34 anos de Zaki Narchi não cabem nas palavras bem-humoradas de Áurea. Nem sempre o sorriso estampa a tela que nos divide, lembrar de alguns momentos é incômodo, porém, necessário. “Eu ia pros bailes com as minhas amigas e a gente mentia o endereço, falava que morava em Santana, Jardim Brasil, mas nunca falava que morava na favela” isso, porque, ninguém gostaria de interagir com alguém que viesse da favela, da Zaki Narchi.
Mais uma memória desce a seco na garganta, sem água e muito menos o doce sabor das conquistas. Áurea tinha acabado de  “amigar” com seu ex-marido, foram juntos até as Casas Bahia, empolgados, para comprar uma geladeira nova. Depois do pagamento, o que ouviram? “Ah, a gente não pode entregar porque vocês não têm endereço e lá (na favela da Zaki Narchi) é área de alto risco.” O silêncio de Áurea fala muito mais do que qualquer palavra, o abismo social está ali. “Não me esqueço disso nunca.”

          “O dia que eu recebi minha chave (do apartamento) eu falei: ‘nossa, agora sim você vai ter                         uM endereço, agora vai poder dizer: você mora em tal lugar’. É uma sensação muito boa.”

Áurea sempre esteve ali. Áurea só passou a existir perante a sociedade em 1996, quando conquistou seu endereço.
Se tem algo que marca, de forma definitiva, o retrato da Zaki Narchi, é a ida de Paulo Maluf até o local. O brilho no olhar toma conta de Áurea que, sentada em seu sofá com o celular na mão, logo após bater uma sopa de feijão para o jantar, relembra: “Se vocês votarem na gente, nós vamos dar os predinhos pra vocês”, falou Paulo Maluf em um palanque na favela. E Áurea termina de forma convincente: 

                          “Aí, né, todo mundo votou. Até hoje se o Paulo Maluf se candidatar,                                                                              acho que todo mundo vota nele”.

Ainda sobre Paulo Maluf, figura marcante aos moradores, Penha relembra animada apontando para o bloco em que mora: “ele veio aqui nesse bloco, na casa da minha vizinha, aí em frente. Tomou café, ela fez até bolo de cenoura pra ele”. Rafael não carrega o mesmo apreço por Paulo Maluf, viveu altos e baixos na comunidade, mas lembra com carinho de sua infância e adolescência no local.
As janelas da Zaki Narchi dizem que ele é um cara carismático. Se um dia conversar com Rafael, poderá afirmar o mesmo. Foi assim que conquistou suas amizades, várias que, inclusive, completam mais de 20 anos. Voltando para os anos 2000, a molecada tinha acabado de jogar bola e resolveu ir brincar na beira do córrego Carandiru, ao lado da Zaki.
Uma pequena ponte cruza o riozinho, e o mais divertido, é claro, sempre foi se pendurar por baixo da ponte e atravessar até chegar bem na beiradinha da água. De repente, não se sabe como, um chinelo foi parar no meio do rio. E agora? Alguém tem que pegar! Rafael, magrelo, esguio, cabelo escuro e pele clara, foi até o meio do córrego  e pegou o chinelo. A água batia na canela e nos lugares mais fundos, no joelho. Mas o  problema é que tinha muito entulho no meio da água, e quando se deu conta, tinha cortado o pé. A febre alta veio, o destino foi, sem dúvida, o pronto atendimento. E então o inesperado aconteceu: duas injeções, uma em cada popa.
A dor vem até hoje, mas entre risadas de uma infância bem vivida na Zaki Narchi. Rafael descobre e escreve sua história entre erros, acertos, risadas, choros, amigos, e, acima de tudo, família. A família na Zaki é, muitas vezes, a base e o que solidifica as relações do Conjunto Habitacional que abriga mais de 700 delas.
Aos 19 anos, Vanessa Lima se viu com duas crianças para cuidar. Sua filha, Lara, e seu irmão, Rodrigo. Atualmente, comemora ao lado de seu marido e três filhos, Rodrigo, Lara e a caçula Laura, as conquistas e a estabilidade que alcançou dentro da Zaki Narchi. “A minha vida gira em torno deles na verdade. Até esses dias atrás eu era dona de casa só, então vivia só pra eles e pra casa, né”, conta Vanessa que agora equilibra a rotina de trabalho, casa, filhos e a Associação Amigos da Zaki Narchi, onde é voluntária.
Essa estabilidade não chegou fácil. Sentada na cama do quarto de seus filhos, tentando conciliar a correria das meninas dentro de casa, com as interrupções e a nossa conversa, Vanessa afirma que:

                                   “o lugar que a gente mora nos obriga a aprender a viver”. 

Quando chegou à Zaki, aos 9 anos, foi taxada como patricinha por vir do Lauzane e poder comprar o lanche na escola com os trocados que sua mãe lhe dava semanalmente. Por vezes, ficou sem comer porque algumas meninas pegavam as poucas notas. Com medo dessa nova realidade que encarava, Vanessa ficava na sua.
Hoje, aos 28 anos, Vanessa aprendeu a viver com a Zaki Narchi. Aprendeu a viver na Zaki Narchi. Trabalha, cuida de seus filhos e é voluntária na Associação Amigos da Zaki Narchi, onde, através da ajuda de colaboradores arrecadam mantimentos, oferecem atividades para as crianças da comunidade e fazem anualmente o Dia Z.
O Dia Z é um dia recheado de atividades na comunidade, que acontece no segundo semestre, em comemoração ao dia das crianças. Assim, a molecada pode brincar, fazer atividades, ganhar alguns brinquedos, ser criança de forma livre.

            “Nunca tinha esse tipo de coisa aqui, aí quando fizeram o Dia Z, foi o dia mais marcante                                      pra  mim, Foi uma experiência única”, relata Mirelle Costa, 11 anos.

Mi, como carinhosamente é chamada, é irmã de Camille, que completou 15 anos nos meados em que fizemos a entrevista. As duas irmãs são o retrato típico de dupla de meninas que vivem como gato e rato e que no fundo se amam acima de tudo.
Camille tem madeixas recém pintadas de ruivo. Às vezes deixa os cachos à mostra, às vezes alisa. Quem conhece Camille Costa sabe que ser tagarela e, como ela mesma diz, ter cara de antipática são suas primeiras impressões. Quem é seu amigo, sabe que de antipática ela não tem nada. “Quando eu descobri e tive a oportunidade de participar dos projetos daqui, tipo a dança, o futebol, foi marcante pra mim. Tipo surreal.”
No auge dos seus 15 anos, conta que já fez parte de muitos projetos que são oferecidos na Zaki. Começou no judô, passou pelo futebol e hoje está no ballet e jazz. Há 5 ou 6 anos, Camille começou no ballet: “(Os primeiros dias) foram complicados, né?! Pequenininha, birrenta, não sabia quase nada”. Hoje, conta com alegria que é a mais nova dentre as integrantes do grupo de jazz, que tem outras meninas e mulheres de 20 e poucos anos.
Mi é doce, fala suave e um pouco mais tímida. Com os cabelos pintados de rosa pink e um sorriso de princesa, não esconde o quanto a infância ainda toma conta dela. Durante a conversa, sua irmã dedura que ela gosta bastante de brincar com outras amigas na quadra, de boneca e aproveitar os momentos de tempo livre.
A criançada sempre pôde ser livre na Zaki Narchi, no entanto, algumas memórias marcam a lembrança de quem nasceu e cresceu na comunidade. Ana Beatriz Gomes, 14 anos, tem um sorriso encantador, cabelos cacheados, escuros e conta com tranquilidade que prefere ficar em casa, não gosta muito de estar nos ambientes comuns da Zaki.
Em suas lembranças, algo que marcou a infância de Ana no local foi um confronto entre Policiais Militares e moradores da comunidade.

                      “Presenciei um monte de ônibus sendo queimado, foi meio que um conflito,                                                                     uma guerra”, conta com certo embargo na voz.

Em frente a janela de seu apartamento, no bloco 28, Ana viu um ônibus em chamas numa tarde de domingo. A fumaça dos automóveis queimando, das bombas e do gás de pimenta jogado pelos policiais era tanta que foi impossível ficar com a casa aberta. Fazia calor e era bem no horário em que o almoço estava sendo preparado. Todos ficaram trancafiados no apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro.
O que Ana conta está registrado em matérias dos jornais O Globo, Folha de S. Paulo e Extra no ano de 2014. “Se não me engano, foi o que me falaram, um boato, não sei se é verdade ou mentira. Isso foi porque os policiais mataram duas pessoas daqui”, e sim, este foi o pontapé inicial do conflito entre o protesto dos moradores e os PM ‘s.
De acordo com um policial militar, em fala na matéria do O Globo, o morador foi morto porque resistiu à prisão e estava em um carro roubado com seu comparsa. De dentro da Zaki Narchi, o que Ana destaca é que até hoje ela não pode afirmar o porquê desse acontecimento. Porém, o que diz com certeza é que: “fiquei com muito medo, achei que realmente ia acontecer alguma coisa. É uma lembrança ruim, mas a única que me marca”.
Os ônibus ficaram atravessados na Avenida Zaki Narchi, importante via da Zona Norte de São Paulo, que deu nome ao Conjunto Habitacional. Segundo Rafael, o local herdou esse nome de um comerciante árabe que morava na região. E, realmente, Zaki Narchi é uma homenagem ao famoso comerciante, de homônimo, nascido em Homs, na Síria. Segundo o site São Paulo In Foco, foi um dos primeiros imigrantes dessa nacionalidade a eleger São Paulo como sua terra.
Na época em que o Conjunto Habitacional não existia, os barracos do local já carregavam esse nome: Favela Zaki Narchi. Localizada em frente da Casa de Detenção de São Paulo, o antigo Carandiru, também carrega muitas lembranças da época em que o presídio existia.

                             “Vira e mexe tinha fuga dos presos, eles faziam rebelião, fugiam e                                                                                 vinham pra cá”, lembra Áurea. 

Muitas vezes esteve dentro de casa, dormindo, e acordou assustada com fortes barulhos: era a polícia estourando a porta dos barracos, invadindo, procurando os presos. “Presenciei muitas vezes da gente ver os presos passando correndo nos becos, tentando invadir os barracos também”, as lembranças engasgam a fala da moradora que também conta que se a polícia viesse perguntar algo, ninguém poderia falar nada. Do contrário, estariam jurados de morte por parte dos detentos.
Aquiles de Silva Souza, conhecido pelos mais íntimos como Bugu, compartilha do mesmo cenário. Do tipo simpático, que tem voz de locutor e cativa no primeiro olá, não esconde sua timidez. Chegou à Zaki aos 11 anos, vindo da Vila Penteado, na Brasilândia, e hoje está à frente de diversas atividades na comunidade.

              “O que impactava, eu creio que não só a mim, mas a todos da quebrada, era a violência. O                            grau de violência era muito grande, às vezes a gente abria a porta e tinha que pular um                                           cadáver”, relata aos 40 anos, 28 deles vividos na comunidade.

Penha também divide memórias de momentos como esse, e conta que em 2 de outubro de 1992, quando aconteceu o massacre do Carandiru, estava em casa e ouviu muitos gritos, tiros, tudo. Naquele dia, a trilha sonora da Zaki Narchi era diferente. Foram mortos 111 presos.
“Eu e minhas vizinhas, a gente foi tudo lá pra avenida ver, e os policiais fecharam tudo, só vimos na hora que parou. A gente via só os corpos saindo e entrando no camburão. Já estava tudo morto.” Penha finaliza dizendo que foi tudo muito feio e só depois de dois ou três dias que todos os corpos foram retirados de lá. Essas lembranças são, também, engolidas a seco. E infelizmente, regadas a muito sangue.
Da janela da Zaki, era possível ver a janela das celas, onde os presos ficavam sentados com as pernas para fora. “A gente passava, eles ficavam tudo naquelas cancelinhas com as pernas pra fora. A gente passava ali e eles ficavam gritando, chamando”, conta Áurea. Isso tudo acabou em 8 de dezembro de 2002 quando ocorreu a implosão do Carandiru, onde hoje é o Parque da Juventude.
De forma unânime, todos dizem que o Parque da Juventude é um ótimo local. Quase que uma segunda casa para os moradores que, antes da pandemia, iam ao local, aproveitavam a biblioteca e levavam as crianças para brincar. De fato, o Parque da Juventude trouxe outros ares a Zaki Narchi e a Zona Norte em geral.
 
Como qualquer outro lugar, as janelas da Zaki também conheceram a pandemia. No entanto, de forma mais rígida. Os corredores não puderam parar de se movimentar, os trabalhadores continuaram na rua, afinal, como colocar comida na mesa sem receber no fim do mês? O que dá certo acalento é o pequeno número de moradores que foram atingidos de forma brutal pelo coronavírus. Não é possível numerar quantos se foram ou contraíram Covid, mas o que todos afirmam é que poucos foram os casos mais graves na quebrada.
O uso de máscara é respeitado fora dos corredores que cruzam a Zaki. Mas, dentro das janelas, são poucos aqueles que usam a proteção facial. Afinal de contas, quem usa máscara no quintal de casa?
“Aqui é bom de morar”, diz Penha. “Hoje a gente mora aqui nesse lugar maravilhoso”, acrescenta Áurea. “Aqui é muito acessível o local”, afirma Rafael. Elogios quanto à Zaki Narchi não faltam. Quem vive, existe e resiste nas quebradas da Zaki, gosta de estar ali. Isso não anula os sonhos e a vontade de alguns deles de um dia finalizar o ciclo dentro da comunidade e ver o raiar do sol por meio de outras janelas.
As paredes, as janelas, as portas, as grades e o chão da Zaki Narchi colecionam histórias. Felizes, tristes, engraçadas, de suspense, que te deixam de queixo caído e revelam muito sobre a vida. Muito mais do que uma comunidade que fica escondida aos olhos da população, a Zaki é vida. Movimento. Resistência.