Janela da Zaki
Raízes que sonham com um novo pôr do sol

Raízes que sonham com um novo pôr do sol

Áurea Marta Silva está nas raízes da Zaki Narchi. Seu sorriso e seus olhos brilham ao falar de sua vida. Áurea lembra o céu estrelado. Pele preta, sorriso e pupilas de estrela. Em seu sangue, a luta de ser mulher, preta, periférica.
Sem romantizar, o primeiro ato da vida de Áurea e de oito dos seus 14 irmãos não foi suave e nem brando. Lembranças tristes permeiam a realidade da menina que chegou aos 16 anos na Zaki Narchi e aos 50 sonha em um dia ver o mundo por outras janelas. De seus irmãos, alguns se perderam nas drogas. Um deles, chegou a fechar os olhos na Favela da Zaki. 
Antes de começar a trabalhar, se divertia com sua melhor amiga e vizinha Maura. Os passeios eram ir catar o restante das frutas e verduras na feira, pedir na porta das casas e para as pessoas nas ruas. 

        “A gente se divertia assim, com essa vida bem triste”, conta com um sorriso de sabor agridoce.

O sorriso fica mais adocicado quando se recorda de Irmã Bernadete. “Metade do que eu sou hoje, agradeço a ela.” Irmã Bernadete é uma freira do Colégio Luiza de Marillac, localizado próximo ao Cingapura, que visitava a favela todos os domingos. Na época, uma das poucas que ia até o local. Lá, dava aulas para as crianças e adolescentes, lia a Bíblia, levava até a Igreja, ao colégio e mostrava uma realidade diferente da permeada por violência, drogas e prostituição das vielas da Zaki. 
Certo dia, Áurea e as amigas foram até a missa de domingo na Igreja de Sant’Ana, como era combinado com a Irmã. Chegando lá, sentaram no primeiro banco, estrategicamente posicionadas para que Bernadete visse cada uma delas. Algum tempo depois, disfarçaram e foram correndo para um salão de baile onde aconteciam matinês aos finais de semana. Entre risadas, Áurea se lembra das travessuras que aprontava com as amigas e de como, apesar de tudo, era possível se divertir.
A vida na época em que ainda não existia o Conjunto Habitacional era sólida. Havia dias em que após voltar do trabalho, a casa tinha sido invadida. Botijão de Gás? Roubado. O que acalenta Áurea é que esse tempo passou e hoje ela pode curtir o segundo ato de sua vida no conforto de seu apartamento. 
No intervalo entre o primeiro e o segundo ato, Áurea e sua família passaram seis meses no alojamento, onde aprenderam a dividir espaço, conviver com a vizinhança e respeitar cada um. “Ali já tivemos uma pré-educação pra vir pros prédios”, conta.
Um cômodo grudado ao outro, com piso e uma janela era tudo o que a família tinha direito. Homens e mulheres com banheiros coletivos e separados por gêneros. Lavanderia comunitária e com hora marcada: aprendizado diário de como é dividir espaço com o outro. Após sair dos barracos, essa realidade já soava melhor do que o chão batido e os tapumes de madeira da favela. 
Acima, fotos de sua filha Ariane no alojamento. Abaixo, fotos já no apartamento.
Quando Paulo Maluf prometeu a entrega dos apartamentos, os olhos começaram a brilhar de uma forma diferente, sinal de que a campainha do segundo ato tocou. A sonhada casa própria com água, luz, saneamento básico e endereço estava próxima. Áurea estava casada com com seu ex-marido, e sua filha havia acabado de completar um ano. De forma inesperada, um apartamento no bloco 23 vagou. Ansiosos, correram com toda a documentação sob o olhar da Assistente Social. 
Há 25 anos Áurea está no ambiente de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e lavanderia. Lá, criou seus dois filhos, Ariane Andriele Silva e Cleiton Silva, com direito a comemoração em todos os aniversários. A mãe coruja batalhou para garantir o que estava ao seu alcance: bolo, guaraná e decoração não faltavam nas festinhas para os amigos e familiares. 
Com cinco décadas bem vividas, Áurea escreve agora o terceiro ato de sua vida. Os dois filhos estão casados; Cleiton, mora no Rio de Janeiro e Ariane casou há menos de um ano. O apartamento que sempre esteve movimentado, deu lugar ao silêncio e aos latidos da companhia de sua cachorrinha. 
Batalhadora, desde os 18 anos Áurea trabalha em casas de família como doméstica. Carioca de sangue, mudava de casa o tempo todo, o que a impediu de completar a escola. Foi com a Irmã Bernadete que conseguiu concluir os estudos até a quinta série. Hoje, se questiona se deveria ter continuado o aprendizado.

         “Mas ainda dá tempo, né? Depois que passar a pandemia quero voltar a estudar também. (…)                                                        Terminar pelo menos o ensino médio.”

Cheia de sonhos na bagagem, Áurea não é do tipo “Zaki minha quebrada, nasci aqui, morri aqui”. É fato que se orgulha de ter criado filhos que hoje trilham seus próprios caminhos, ter encontrado amizades verdadeiras no local e um cantinho para chamar de seu. 
Com o pé no chão e em meio a risadas cheias de vida, fala: “eu quero ir embora, não sei pra onde ainda, mas eu quero ir.  Tudo tem começo, meio e fim. Quero ir, quando tiver a oportunidade, quero ir embora sim. Também não é só ficar pensando assim, né? Tem que correr atrás, ver, fazer, melhorar, procurar. Aí uma hora dá certo”.